O novo filme de Walter Salles é uma adaptação do livro biográfico escrito por Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice e Rubens Paiva, protagonistas que têm suas vidas destruídas pela ditadura militar
A esta altura, não há dúvidas de que o filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles (Central do Brasil) e protagonizado por Fernanda Torres (Eunice Paiva) e Selton Mello (Rubens Paiva), é um sucesso absoluto de crítica e público.
E, para se ter uma ideia do tamanho do sucesso de “Ainda Estou Aqui”, fui ansioso assistir ao longa-metragem em um cinema de rua, em plena segunda-feira, na sessão das 13h, com a certeza de que estaria sozinho ou com poucas companhias. Ledo engano, a sala estava abarrotada de gente. Que felicidade!
O filme de Walter Salles é dividido em dois momentos: no primeiro, acompanhamos o dia a dia da família Paiva: Rubens, um engenheiro e deputado cassado pela ditadura em vigor no Brasil (1964-85), e Eunice, uma mãe que, com muita ternura, toca o lar e cuida de seus cinco filhos. A felicidade reina na bela casa à beira-mar, mas, claro, com os conflitos diários de uma grande família.
No entanto, todo o clima de ternura do lar dos Paiva é quebrado de maneira abrupta quando, no dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva é levado por policiais à paisana para depor. A ternura cotidiana na qual já estávamos adaptados é violentamente rompida, e o filme constrói essa transição de maneira magistral, mas também com muito terror. A violência militar, que parecia algo externo à família Paiva, adentra a sala de estar e por lá permanece.
Porém, antes do fatídico dia 20 de janeiro de 1971, o horror da violência policial já havia, de alguma maneira, contaminado a família Paiva quando a filha mais velha, Vera, também chamada de “Veroca” (Valentina Herszage), é enquadrada pela Polícia Militar junto com alguns amigos. A cena construída por Walter Salles é primorosa ao conseguir, em poucos minutos, nos informar que tal truculência não deixou de existir, mas que hoje possui outros alvos: antes, os subversivos e comunistas; hoje, negros e pobres.
O que torna tudo ainda mais assombroso no filme de Walter Salles é que, na primeira parte de “Ainda Estou Aqui”, somos levados a pensar que, em certa medida, havia uma ditadura que não era tão violenta assim e que estava atuando “apenas” para manter “a ordem e o progresso”. No texto e na fotografia, o longa-metragem coloca em cena a alienação sobre o que de fato ocorria no Brasil e nos porões da ditadura, onde militantes políticos eram torturados e mortos. É essa violência que se apossou de todos os cômodos da casa da família Paiva.
A entrega de Fernanda Torres
Todo o horror construído por Walter Salles ganha ares ainda mais densos com a atuação de Fernanda Torres, que, com olhares de pânico e uma fala contida, nos transmite a destruição de uma família.
Há vários momentos excepcionais da atuação de Fernanda Torres em “Ainda Estou Aqui”, mas vou destacar um que considero paradigmático na construção da história e do clima do filme.
No dia em que os agentes da ditadura vão à casa dos Paiva para levar Rubens, estamos diante de um dia ensolarado, com algumas crianças acordando… De repente, os cômodos são ocupados por homens armados. Um deles, que se posiciona na sala de estar, empunha um revólver com silenciador. A maneira como Fernanda Torres conduz seus passos e olhares e como diz aos militares “que tem apenas crianças na casa e que não precisam de armas” é impressionante: com o olhar e com uma voz quase inaudível, somos transportados para o horror.
A violência policial
O filme de Walter Salles, além de ser histórico e baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, é também uma obra sobre a violência policial estruturada durante o período da Ditadura Militar, mas que se manteve e se aprofundou no período democrático.
A família Paiva foi destruída pela violência policial, assim como centenas de outras foram durante o regime militar no Brasil. Porém, se por um lado a ditadura terminou e o Congresso Nacional voltou a ser ocupado por parlamentares eleitos pelo voto direto, o mesmo não se pode dizer da violência militar, que ainda assola o Brasil sem muitas explicações, da mesma maneira que ocorria entre os anos 1960 e 1980.
Além disso, a história de Eunice Paiva, que dedica toda a sua vida à luta pela memória e verdade de Rubens Paiva e pelo reconhecimento do Estado como autor de sua morte, dialoga diretamente com a história de dezenas de mães que travam a mesma luta pela memória e verdade de seus filhos assassinados por agentes do Estado.
“Ainda Estou Aqui” cumpre um duplo papel: surge no tempo certo, quando grupos políticos relativizam os horrores da ditadura e mostra o terror que é viver em um regime de exceção. Porém, também retrata que a violência policial ainda continua a aterrorizar, só que hoje em territórios e alvos distintos.